Maria Bonita e Lampião, escultura de Felix Santos, compõe exposição no MHS. |
Carlos Brás*
O pequenino Sergipe,
entre todos os estados pelos quais o flagelo do cangaço deixou suas
marcas, tem lugar de destaque. Entramos definitivamente para a
história do banditismo nacional, de forma excepcional e definitiva,
no dia 28 de Julho de 1938, quando na gruta de Angicos, localizada no
município de Poço Redondo, o tenente alagoano João Bezerra e sua
volante, liquidou Virgulino Ferreira da Silva, o afamado Lampião, e
parte de seus seguidores, interrompendo um reinado de quase 20 anos.
O fenômeno social
cangaço teve como pano de fundo o sofrido sertão nordestino com sua
temível caatinga, ambiente inóspito, pouco povoado, onde só os
fortes sobrevivem. O Raso da Catarina, em território baiano,
sintetiza toda a insalubridade e aridez dessa região do Brasil.
Tempos medonhos aqueles, onde a presença do estado quase não se
fazia notar com o domínio socioeconômico exercido por poderosos
coronéis, proprietários de imensos latifúndios, soberanos da terra
e da gente, da vida e da morte. A miséria e os constantes conflitos
políticos e familiares estão entre os motivos que originaram a
escalada da violência, justificando a formação de grupos armados
particulares, onde ferozes jagunços garantiam a segurança dos seus
patrões.
“Lampião nasceu há
muitos anos, em todos os estados do nordeste”, conforme cita
Graciliano Ramos no seu livro Viventes das Alagoas (1962).
Ser cangaceiro era o grito de revolta dos que não aceitavam a
opressão e injustiça. Desse cotidiano participaram outros
personagens que muitas vezes faziam jogo duplo, a depender de
interesses pessoais. Volantes, grupos formados por soldados (chamados
de macacos pelos cangaceiros) e cachimbos (civis contratados pelo
estado), que praticavam todo o tipo de violação contra a população
dos povoados e grotões, sendo tão temidos quanto os bandoleiros.
Coiteiros (moradores da zona de conflito, que forçados ou não,
auxiliavam os bandidos com suprimentos e esconderijo) enfim uma rede
de omissão, medo e cumplicidade que permitiu a longa duração do
reinado lampiônico.
Mesmo passadas tantas
décadas dos combates encarniçados e da morte do seu líder maior,
este triste enredo ainda desperta paixões. O cangaço é uma epopeia
repleta de contradições com relação a comportamento, datas e
acontecimentos. A mitificação do general da caatinga é responsável
pela aura que o cerca, imagem de herói e bandido, que povoa o
imaginário popular, promovendo debates, movimentando um circulo
gerador de divisas através de manifestações artísticas e
culturais, teses acadêmicas, artigos e investigações sociológicas.
Essa condição permite
afirmar que o rei do cangaço teve, na realidade, três vidas
distintas: 1) o homem comum, vaqueiro, almocreve e coureiro; 2) O
facínora amado e odiado; 3) o personagem imorredouro, eternizado em
cordéis, filmes, literatura, história em quadrinhos, telenovelas,
artes plásticas e folguedos populares.
Xilogravura de Nivaldo Oliveira compõe exposição do MHS |
Em solo sergipano, os
grupos de famigerados com seu chefe à frente, adentram pela primeira
vez no dia 26 de fevereiro de 1929. A cidade de Carira foi escolhida
para a indesejável visita dos fugitivos das volantes baianas. Dessa
empreitada, conforme alguns relatos participaram apenas sete feras
sedentas de tudo, o que já era suficiente para aterrorizar qualquer
povoação, e ali se utilizou mais uma vez a tática do bom
visitante, amigo, cordial e respeitoso, que não pretendia cometer
atos violentos, pagando por tudo que precisava, e promovendo festas.
As estripulias em nossas
terras gradativamente tornaram-se rotineiras. O rastro do mal logo se
fez notar, trazendo ao pacato sergipano a dor da humilhação, as
lágrimas pelos entes queridos ultrajados em sua honra ou mortos, as
chantagens e extorsões. Como sempre acontecia, uma rede de
colaboradores logo foi arquitetada, garantindo uma relativa segurança
à cabroeira. Curiosamente, conforme relatos, o estado de Sergipe foi
o que mais contribuiu com elementos para os grupos de meliantes,
através do município de Poço Redondo.
No livro A misteriosa
vida de Lampião, de autoria do cearense Cincinato Ferreira Neto,
à página 158, encontra-se alusão ao nome de Eronildes de Carvalho,
futuro interventor de Sergipe, e seu pai, Sr. Antônio Caixeiro, como
um dos maiores protetores de Virgulino em nossas terras, fato este
que é contestado enfaticamente pelos familiares dos citados.
Nossa Senhora da Glória,
Pinhão, Frei Paulo, Alagadiço, Gararú, Aquidabã, Saco da Ribeira
(Ribeirópolis), Monte Alegre, Canindé e Capela, onde a célebre
chegada do malfazejo é contada até hoje, foram cidades testemunhas
da aventura cangaceira. E muitos ainda recordam desse tempo sinistro.
O nome de Zé Baiano, com seu ferro em brasa, que deixou marcas
indeléveis no corpo de algumas mulheres ainda causa repulsa na
imagem evocada.
Lampião foi senhor
absoluto do seu tempo. Enquanto uns o consideravam um facínora
impiedoso e sanguinário, capaz das piores atrocidades, outros lhe
atribuíam qualidades, tais como, caridoso, sábio, bondoso, justo,
educado, refinado, artista etc. Porém, historiadores e pesquisadores
respeitados pela seriedade de seus trabalhos, são unanimes quando
reconhecem no capitão a astúcia de um guerrilheiro, o tino
estratégico e inteligência de um militar experimentado. Implacável
quando se tratava de vingança e autoafirmação. Benevolente quando
precisava de proteção, exercia liderança absoluta sobre seus
comandados, o que lhe permitiu sobreviver, lutando sempre em
desvantagem, sendo vencido apenas pela traição.
A derrota, mais cedo ou
mais tarde haveria de chegar, e em Angicos se escreveu a última
página dessa dolorosa saga brasileira. Dali escaparam alguns, que
ajudaram a perpetuar a lenda. Corisco, alcunhado de “Diabo Louro”,
ausente no combate final, responsabilizou-se pelo funesto epílogo,
promovendo como vingança mais mortes brutais pela região. Consta
que a morte de Lampião em 28 de
julho de 1938 não significou o fim do cangaço, a esperança de sua continuidade findou-se com Corisco no dia 25 de maio de 1940.
Corisco, o Diabo Louro em forma de cangaceiro |
*Carlos Brás é pesquisador e acadêmico de Museologia da Universidade Federal de Sergipe,
estagiário do Museu Histórico de Sergipe/SECULT. E-mail: carlos_braz@globo.com
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
MACIEL, Frederico
Bezerra. Lampião, seu tempo e seu reinado. 2ª edição. Ed. Vozes. Petrópolis, 1982. (volumes IV e
VI)
FERREIRA NETO, Cincinato.
A misteriosa vida de Lampião. Fortaleza: Premius, 2008.
RAMOS, Graciliano.
Viventes das Alagoas. 8ª edição. Rio de Janeiro: Record,
1962.
Cartaz da exposição do MHS |
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