Procissão do Senhor dos Passos. Foto: Marcio Garcez, 2006 |
Thiago Fragata*
A
Procissão do Senhor dos Passos acontece em São Cristóvão há
séculos, sempre realizada no segundo fim de semana da quaresma. Os dois
momentos ou as duas procissões, uma chamada Procissão de Senhor dos Passos,
outra chamada Procissão do Encontro fazem parte do Ciclo da Semana Santa, que
tem ainda a Procissão do Fogaréu e a Procissão do Enterro do Senhor como
manifestações complementares. Todas encenam o sofrimento de Jesus Cristo para
remissão dos pecados da humanidade e se constituem em procissões penitenciais. [1]
Conforme
reza a tradição, a guarda da imagem de Senhor dos Passos e a organização do ato
processional ficava aos encargos dos leigos da Irmandade de Nossa Senhora do
Carmo, transformada em Associação em 1977. Não é possível datar com exatidão o
início da maior romaria de Sergipe, os indícios acenam que tudo começou no
final do século XVIII ou início do XIX. Consta que a imagem articulada, chamada
de roca, em razão das características constitutivas e mobilidade, foi
encontrada no rio Paramopama, afluente do Vaza barris. Nisso, a história da
imagem nutre curiosa semelhança com a da padroeira do Brasil, Nossa Senhora
Aparecida, içada por pescadores do fundo do rio Paraíba, em São Paulo, no ano de
1717. Serafim Santiago escreveu sobre a origem da imagem do Senhor dos Passos:
“Um homem praiano (diziam elles) cujo nome
não me lembro encontrou certo dia, rolando pela costa que fica ao sul da
cidade, um grande caixão resultado talvez de um naufrágio de alguma sumaca;
elle cuidadosamente rolou-o para a terra, abrio-o e surprehendido ficou
verificando a existência de uma perfeitíssima imagem de roca em tamanho
natural. O homem de educação religiosa muito honesto, tomou uma canoa e nella
acomodou o referido caixão, e com outros companheiros transportou para a velha
cidade o feliz e milagroso achado. Foi esta sagrada imagem ali entregue aos
frades jesuítas carmelitas que collocou em uma capelinha da Egreja – Ordem 3ª. do
Carmo, e depois de longos annos, mudada pra o throno do Altar-mór da mesma
Egreja. Como sabem, sempre foi no segundo domingo da quaresma, o dia aprasado
para effetuar a tradicional Procissão dos Passos na antiga cidade”. [2]
Dessa
forma, a imagem de traços europeus teria alcançado seu destino: “A cidade de Sergipe Del Rey” [3], como
estava gravado no caixão submerso das águas do Paramopama. A origem das
procissões remonta à Idade Média, quando a “peste negra” e a inconstância
meteorológica punham em xeque o futuro da humanidade, segundo o imaginário da
época. Daí a Igreja Católica promover cortejos de relíquias sagradas, entoando
ladainhas a rogar o perdão de Deus. A imagem de roca surge neste contexto para
dirimir alguns problemas: o manequim articulado e leve permite montar a
iconologia de qualquer santo; era preciso retirar do meio do povo imagens
exclusivas de ouro e/ou prata, como também aliviar o peso do andor.
A
Procissão do Senhor dos Passos, que acontece na quarta cidade mais antiga do
Brasil, sai do Convento de Nossa Senhora do Carmo, no sábado à noite. Depois
dos ofícios, o préstito acompanha a imagem até a Igreja de Nossa Senhora da
Vitória. O que os romeiros assistem a cada ano é uma espécie de auto dramático,
ambulante, barroco, com paradas denominadas “Passos” ou estações da Via Crucis.
Entre a massa de fiéis predomina a túnica roxa atada com cordão, à semelhança
da imagem, numa forma de compartilhar o sofrimento do nazareno como um cirineu.
As
mais variadas promessas já foram cumpridas: um certo Chico Alves, arrastou
pesada cruz de Aracaju a São Cristóvão; outro “pagador de promessa” esculpiu
livro de madeira, como ex-voto, porque aprendeu a ler e escrever depois de
adulto. Aos fiéis que acompanham o ato processional – de joelhos ou “se arrastando que nem cobra pelo chão” –
o poeta Elyseu Carmelo lembrou em versos: “Quem
de joelhos passa lembrando seu martyrio/ Fá-lo sinceramente seguindo o
Redemptor/ Ferido e torturado, do seu calvário à via”.[4]
No
domingo, acontece a Procissão do Encontro. O ápice desse ato é o encontro das
imagens do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores, invocação mariana.
Seguindo percurso distinto, a primeira sai da Igreja Matriz ao tempo em que a
segunda sai do Convento do Carmo. Milhares de fiéis ganham as ruas e a Praça São
Francisco para escutar o sermão e o canto da Verônica que enredam a comovente
liturgia do catolicismo colonial.
Os
milagres atribuídos ao Senhor dos Passos geraram os ex-votos e resultaram no
Museu que hoje ocupa o claustro da Ordem Terceira do Carmo. Ex-voto é
abreviatura de “ex-voto suscepto”,
frase latina que significa “promessa
feita”. [5] Como obras de arte ou prova da graça alcançada, tais objetos
elaborados em madeira, parafina, gesso ou barro representam a parte do corpo
sobre a qual o promesseiro rogou a intercessão do taumaturgo. No acervo do
Museu dos Ex-votos, aberto a visitação pública de domingo a domingo, podemos
encontrar os mais enigmáticos símbolos da fé cristã.
No
passado, São Cristóvão foi centro político e religioso da Capitania de Sergipe
Del Rey. Esse antigo centro de convergência religiosa preserva manifestações
culturais do período colonial, como a Procissão de Senhor dos Passos.
*Thiago
Fragata - Historiador e poeta, diretor do Museu Histórico de Sergipe
(MHS/Secult). Email: thiagofragata@gmail.com
Artigo publicado em VIEIRA, Márcio José Garcez. Senhor
dos Passos em todos os passos. Aracaju: Gráfica J. Andrade, Banco do Nordeste,
2006, p. 21-25. É um dos textos que compõe a coletânea “São Cristóvão respostas a esfinge do tempo”, que aguarda publicação.
NOTAS DE PESQUISA
[1] TINHORÃO apud
NUNES, Verônica. São Cristóvão mantém tradição religiosa. Gazeta de Sergipe. Aracaju, n. 12927, 27/2/2002, p. C4.
[2] INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE SERGIPEE, Aracaju. Annuario Christovense, de Serafim
Santiago, 1920. p. 19verso e 20. Manuscrito.
[3]Idem.
[4] ARQUIVO GERAL
DO JUDICIÁRIO DE SERGIPE, Aracaju. Sabbado de Passos, 18/2/1940. Diário de
Elyseu Carmelo. Manuscrito.
[5] KARWINSKY,
Esther Sant’Anna de Almeida. Ex-votos: confrontos entre o popular e o
científico – uma forma milenar de comunicação de massa. Anais do Encontro Cultural de Laranjeiras. Aracaju, Governo do
Estado de Sergipe, 1994, p. 317.
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