segunda-feira, 10 de março de 2014

Procissão do Senhor dos Passos

Procissão do Senhor dos Passos. Foto: Marcio Garcez, 2006



Thiago Fragata*

A Procissão do Senhor dos Passos acontece em São Cristóvão há séculos, sempre realizada no segundo fim de semana da quaresma. Os dois momentos ou as duas procissões, uma chamada Procissão de Senhor dos Passos, outra chamada Procissão do Encontro fazem parte do Ciclo da Semana Santa, que tem ainda a Procissão do Fogaréu e a Procissão do Enterro do Senhor como manifestações complementares. Todas encenam o sofrimento de Jesus Cristo para remissão dos pecados da humanidade e se constituem em procissões penitenciais. [1]

Conforme reza a tradição, a guarda da imagem de Senhor dos Passos e a organização do ato processional ficava aos encargos dos leigos da Irmandade de Nossa Senhora do Carmo, transformada em Associação em 1977. Não é possível datar com exatidão o início da maior romaria de Sergipe, os indícios acenam que tudo começou no final do século XVIII ou início do XIX. Consta que a imagem articulada, chamada de roca, em razão das características constitutivas e mobilidade, foi encontrada no rio Paramopama, afluente do Vaza barris. Nisso, a história da imagem nutre curiosa semelhança com a da padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida, içada por pescadores do fundo do rio Paraíba, em São Paulo, no ano de 1717. Serafim Santiago escreveu sobre a origem da imagem do Senhor dos Passos:

Um homem praiano (diziam elles) cujo nome não me lembro encontrou certo dia, rolando pela costa que fica ao sul da cidade, um grande caixão resultado talvez de um naufrágio de alguma sumaca; elle cuidadosamente rolou-o para a terra, abrio-o e surprehendido ficou verificando a existência de uma perfeitíssima imagem de roca em tamanho natural. O homem de educação religiosa muito honesto, tomou uma canoa e nella acomodou o referido caixão, e com outros companheiros transportou para a velha cidade o feliz e milagroso achado. Foi esta sagrada imagem ali entregue aos frades jesuítas carmelitas que collocou em uma capelinha da Egreja – Ordem 3ª. do Carmo, e depois de longos annos, mudada pra o throno do Altar-mór da mesma Egreja. Como sabem, sempre foi no segundo domingo da quaresma, o dia aprasado para effetuar a tradicional Procissão dos Passos na antiga cidade”. [2]

Dessa forma, a imagem de traços europeus teria alcançado seu destino: “A cidade de Sergipe Del Rey” [3], como estava gravado no caixão submerso das águas do Paramopama. A origem das procissões remonta à Idade Média, quando a “peste negra” e a inconstância meteorológica punham em xeque o futuro da humanidade, segundo o imaginário da época. Daí a Igreja Católica promover cortejos de relíquias sagradas, entoando ladainhas a rogar o perdão de Deus. A imagem de roca surge neste contexto para dirimir alguns problemas: o manequim articulado e leve permite montar a iconologia de qualquer santo; era preciso retirar do meio do povo imagens exclusivas de ouro e/ou prata, como também aliviar o peso do andor.

A Procissão do Senhor dos Passos, que acontece na quarta cidade mais antiga do Brasil, sai do Convento de Nossa Senhora do Carmo, no sábado à noite. Depois dos ofícios, o préstito acompanha a imagem até a Igreja de Nossa Senhora da Vitória. O que os romeiros assistem a cada ano é uma espécie de auto dramático, ambulante, barroco, com paradas denominadas “Passos” ou estações da Via Crucis. Entre a massa de fiéis predomina a túnica roxa atada com cordão, à semelhança da imagem, numa forma de compartilhar o sofrimento do nazareno como um cirineu.

As mais variadas promessas já foram cumpridas: um certo Chico Alves, arrastou pesada cruz de Aracaju a São Cristóvão; outro “pagador de promessa” esculpiu livro de madeira, como ex-voto, porque aprendeu a ler e escrever depois de adulto. Aos fiéis que acompanham o ato processional – de joelhos ou “se arrastando que nem cobra pelo chão” – o poeta Elyseu Carmelo lembrou em versos: “Quem de joelhos passa lembrando seu martyrio/ Fá-lo sinceramente seguindo o Redemptor/ Ferido e torturado, do seu calvário à via”.[4]

No domingo, acontece a Procissão do Encontro. O ápice desse ato é o encontro das imagens do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores, invocação mariana. Seguindo percurso distinto, a primeira sai da Igreja Matriz ao tempo em que a segunda sai do Convento do Carmo. Milhares de fiéis ganham as ruas e a Praça São Francisco para escutar o sermão e o canto da Verônica que enredam a comovente liturgia do catolicismo colonial.

Os milagres atribuídos ao Senhor dos Passos geraram os ex-votos e resultaram no Museu que hoje ocupa o claustro da Ordem Terceira do Carmo. Ex-voto é abreviatura de “ex-voto suscepto”, frase latina que significa “promessa feita”. [5] Como obras de arte ou prova da graça alcançada, tais objetos elaborados em madeira, parafina, gesso ou barro representam a parte do corpo sobre a qual o promesseiro rogou a intercessão do taumaturgo. No acervo do Museu dos Ex-votos, aberto a visitação pública de domingo a domingo, podemos encontrar os mais enigmáticos símbolos da fé cristã.

No passado, São Cristóvão foi centro político e religioso da Capitania de Sergipe Del Rey. Esse antigo centro de convergência religiosa preserva manifestações culturais do período colonial, como a Procissão de Senhor dos Passos.


*Thiago Fragata - Historiador e poeta, diretor do Museu Histórico de Sergipe (MHS/Secult). Email: thiagofragata@gmail.com Artigo publicado em VIEIRA, Márcio José Garcez. Senhor dos Passos em todos os passos. Aracaju: Gráfica J. Andrade, Banco do Nordeste, 2006, p. 21-25. É um dos textos que compõe a coletânea “São Cristóvão respostas a esfinge do tempo”, que aguarda publicação.

NOTAS DE PESQUISA

[1] TINHORÃO apud NUNES, Verônica. São Cristóvão mantém tradição religiosa. Gazeta de Sergipe. Aracaju, n. 12927, 27/2/2002, p. C4.
[2] INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE SERGIPEE, Aracaju. Annuario Christovense, de Serafim Santiago, 1920. p. 19verso e 20. Manuscrito.
[3]Idem.
[4] ARQUIVO GERAL DO JUDICIÁRIO DE SERGIPE, Aracaju. Sabbado de Passos, 18/2/1940. Diário de Elyseu Carmelo. Manuscrito.
[5] KARWINSKY, Esther Sant’Anna de Almeida. Ex-votos: confrontos entre o popular e o científico – uma forma milenar de comunicação de massa. Anais do Encontro Cultural de Laranjeiras. Aracaju, Governo do Estado de Sergipe, 1994, p. 317.  

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